Biocentrismo, “alface sente dor?” e seres vivos
É comum nas palestras em defesa dos animais e de um modo de viver e de comer que não inclua nenhuma matéria animal no consumo, alguém dizer que as alfaces também “sofrem e sentem dor”. Faz pelo menos vinte anos que ouço isso nos auditórios e ouvi também algumas vezes em sala de aula.
Se comemos um amendoim, pensam as pessoas, então comemos algo igual a um pedaço de carne, ao ovo e ao leite. Apenas uma parte disso está correta: o amendoim é rico em gordura saturada, proteína e minerais. Acaba-se aí a igualdade entre o presunto e o queijo (obtidos do corpo de animais que sofrem do dia em que nascem ao dia em que são mortos) e o amendoim. Esse pode ter desidratado ao ser torrado, mas, definitivamente, não sentiu dor alguma.
Alterações bioquímicas ocorrem com o calor, mas não há no amendoim um sistema nervoso central organizado capaz de registrar emocionalmente os estímulos do frio e do calor, da umidade ou da secura. Não havendo “sensações”, nada há para ser gravado e portanto, sendo a natureza sábia, não fez no amendoim um cérebro, habilitando-o a reter imagens de estímulos exteriores, a avaliar esses estímulos como prazerosos ou dolorosos, a memorizá-los para ter conhecimento para uma próxima vez.
Sim, também é para isso que temos um cérebro. E de tanto armazenar as impressões que vêm do mundo externo e marcá-las com as etiquetas: prazer, dor, bom, ruim, agradável, desagradável, o cérebro que está em cada animal senciente acaba por ser o grande guia que levará o animal a buscar aproximar-se do que tem registrado como bom e a afastar-se do que tem registrado como ruim.
Quando adotamos a dieta vegana, deixando de nos alimentar, vestir, divertir e enfeitar com matérias animalizadas, expressamos outra forma de reconhecer o ser vivo em todas as suas espécies e nuances. Um amendoim, um grão de milho, um grão de feijão, uma maçã, um abacate, um coco têm matéria vital da qual nossos organismos (escrevo nossos pensando em todos os animais que se alimentam de vegetais) podem nutrir-se. Ao comermos esses alimentos, comemos os frutos, as sementes amadurecidas em uma planta, a daquela espécie.
Uma semente está viva, dormindo. Não é um ser vivo, porque para desabrochar como um indivíduo com suas próprias peculiaridades, um indivíduo planta que se cria e recria e que se reproduz em frutos, frutas e suas sementes, muita coisa precisa acontecer.
Uma árvore veio a ser a partir de uma semente. Mas a semente originante dessa árvore não se conduzia em vida, embora contivesse moléculas, genes, nutrientes e tudo o mais que se possa imaginar, sintetizado em seu minúsculo tamanho, o essencial para que, incorporada a água, a luz e nitrogênio, toda sua química pudesse ser completamente alterada até dar surgimento ao brotinho. Mas sem esses aditivos, uma semente não deixa de ser só uma semente. E se a comemos, não comemos um “ser vivo”. Comemos uma matéria carregada de energia, de moléculas gordas, de minerais, de vitaminas e assim por diante.
Para que nasça um ser vivo dessa semente, é preciso a congregação de outras forças que não estão nas sementes. Se elas ali já estivessem, nossa cozinha amanheceria uma floresta todos os dias. Não amanhece. A semente tem coisas sem as quais não se faz uma árvore, mas ela não tem coisas sem as quais uma árvore não se faz.
Perguntam sempre: mas comer couve, alface, rúcula não é o mesmo que comer animais, dado que plantas são também seres vivos? Não é. Animais têm o cérebro e nele o diencéfalo, que os torna seres sencientes, sofrentes, dorentes (termos criados pelo psicólogo e cientista britânico Richard D. Ryder, criador do termo especismo que designa nosso preconceito contra animais de outras espécies). Também somos animais sencientes e por isso sabemos bem o que é dor e sofrimento.
As plantas têm sensibilidade à luz. Sua química se altera com os raios vermelhos, os verdes, os azuis, os rosa, os laranja, ou com a escuridão. Plantas são sensíveis ao tato. O movimento do ar passando sobre seus tecidos (vento) os resseca e a chuva caindo os umidifica ou inunda, os insetos passeando ou comendo pedaços de suas folhas e caules rompem suas películas protetoras e imediatamente há uma reação para afugentar o predador. Sofrendo agressão externa, a química das plantas se altera. Cheiros são exalados para espantar os invasores.
Plantas sentem dor? Segundo o cientista mais atualizado nas pesquisas sobre a sensibilidade das plantas, Daniel Chamovitz (What a plant knows?) não há hipótese de as plantas sentirem dor ou sofrer, pela absoluta ausência de um sistema nervoso central organizado, necessário e presente em todos os animais sencientes, para a defesa dos animais.
Na ética temos a corrente biocêntrica, que defende a vida dos seres igualmente, não fazendo discriminação entre animais e plantas. Por quê? Porque manter-se abacateiro, coqueiro, pessegueiro é algo que deve ter algum valor inerente, um valor que Paul W. Taylor (Respect for nature) chama de “bem próprio”. Destruir o bem próprio de uma árvore é tão danoso para ela quanto é destruir o bem próprio de uma ovelha ao degolá-la, porque sua vida era tão valiosa para ela quanto o é, finalmente, a nossa vida, carregada de um bem que é próprio apenas para cada um de nós.
Veganos não comem animais, por respeito ao bem próprio da vida deles. Bem próprio não é o mesmo que bem-estar. Bem-estar é muito pouco para um animal. Ele precisa ter seu espírito próprio preservado para poder ter o bem que é próprio do tipo de vida na qual ele nasceu.
O que dizer do feijão, do amendoim, do grão-de-bico? Primeiro informo que todos são leguminosas, que, comidos com arroz integral, ou com farinha de milho (não-transgênico), ou com farinha de mandioca ou mesmo a mandioca cozida, a batata doce, a abóbora, contêm todos os aminoácidos essenciais para o nosso organismo. Dito isso, sigo dizendo, em segundo lugar, que nesses grãos não há um bem próprio deles, porque sequer completaram a carga vital sem a qual não há nascimento de um broto que se tornará uma planta. Terceiro, quando comemos coco, abacate, cenoura, milho, comemos o que já está maduro. E se não os comermos aproveitando suas moléculas que nos nutrem, se os deixarmos lá, sobre a terra ou sob ela, o tempo de duração desses frutos, grãos, cereais e sementes não seria capaz de transformar todos em uma nova planta.
Para nascer delas uma nova vida, quando caídas ao solo, é preciso que haja nitrogênio. Não há nitrogênio suficiente para deixar cada grão de milho, de arroz, de trigo, de amendoim, de feijão, cada semente de abacate, de caqui, de pêssego, de laranja, virar uma árvore de sua espécie. Não haveria planeta para tanta planta. Então, ao comermos essas matérias vivas, não destruímos ser vivo algum, porque justamente, para tornar-se um ser vivo, uma planta, a semente precisa de muito nitrogênio.
Para os biocentristas, como Paul W. Taylor, o autor mais elaborado que já li, todos os indivíduos de todas as espécies que tenham sua atividade vital em ebulição, são dignos de respeito, sem discriminação, animais e árvores. Penso que comer plantas ou frutos, frutas, tubérculos etc, ao final de seu tempo vital, quando estão maduros, não é moralmente indefensável, como o é comer animais e seus derivados.
Se comemos frutos da horta, frutas do pomar, grãos, cereais, sementes, tubérculos e folhagens, não destruímos um ser vivo pronto, apenas porque estão maduros. Se não os comermos, apodrecerão sobre o solo. Sem nitrogênio a vida de fato não tem início.
Aproveitamos os nutrientes das matérias vegetais, porque precisamos de energia, de substâncias materiais e de mensagens de luz fotossintetizadas presentes nelas. Mas, devido ao fato de que sequer são um organismo vivo, elas não têm capacidade de sofrer, embora sejam sensíveis, mas a sensibilidade delas é semelhante à da nossa pele, que se refaz do calor e da seca, ou os controla, contraindo os poros quando há ameaça de perda de calor. São reações que sequer chegamos a perceber, elas ocorrem por conta de processos químicos e físicos, sem intervenção da consciência. As plantas são sensíveis a essas variações ambientais e nutricionais.
Ao contrário, na dieta ovo-galacto-carnista, para extrair nutrientes de um animal, matamos o animal. As vacas e galinhas também são mortas, após uma vida de puro sofrimento, para que delas sejam extraídos o leite e ovos.
Se esperássemos que o animal morresse (algo do tipo, o fruto maduro caiu ao chão), para então comê-lo, não haveria mal algum, para ele, poderia haver mal para quem os comesse, caso esse animal estivesse doente. No sistema de produção intensiva de carnes, leites e ovos, abreviamos a vida dos animais, nós os matamos, sem exceção, na fase de bebês ou na primeira infância deles, além de manejar totalmente sua dieta e ambiente pensando em obter o maior proveito possível para nós.
Há uma diferença enorme entre comer grãos, cereais, sementes, frutos, frutas e tubérculos, folhas maduras, crucíferas etc., e comer alimentos animalizados.
Espero ter dado alguma contribuição às elucubrações ontológicas e éticas de quem se dedica a pensar seriamente sobre essas questões.
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