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Artigos, Artigos sobre Direitos Humanos.

… sobre privilégios da elite, controle social, educação e direitos animais.

Democratas são um povo que acredita no invisível. Seu pote de ouro escondido é a promessa iluminista do universalismo democrático. Em meio à selva de experiências políticas mais ou menos acertadas e outras completamente fracassadas e anacrônicas, lá estão os seres democratas e suas enciclopédias, trabalhando um único sapato: o monólito da civilização ocidental.

Leprechauns-democracia-ditadura-governo-democradura-tirania-anarquismo

Assim como as pessoas democratas¹, Leprechauns são guardiões e guardiãs. Mas o que aqueles que defendem a democracia guardam? Não me parece que a metafísica da liberdade contratual seja um impulso suficientemente forte para defesas tão apaixonadas. Tenho a impressão de que tais senhores e senhoras guardam mesmo é o seu pote de ouro. Guardam seus cargos de poder e tudo mais o que dele advém: o controle. Controle social, político, pedagógico.


Tais distintos e distintas querem nos ensinar (sic!) a todo o custo o valor sagrado da ideia que defendem. Sem argumentos melhores do que demonstrar o fracasso de outras tentativas de governo. Que retórica mais baixa! “O meu dá certo, porque o do outro deu errado”. Isso não me parece um argumento convincente.

E não é mesmo. Se o leitor ou leitora quiser descobrir os esforços mais sinceros dos seres democratas em sua defesa, é só ler os jornais do dia, as teses acadêmicas, os trabalhos daqueles que filosofaram, etc. Não continue lendo isto aqui caso não queira ter seu senso civil provocado. Eu avisei.

Bom, em primeiro lugar, existem sérias objeções à democracia. Objeções que indivíduos como eu compartilham. A começar, sua definição é burocrática e trata-se de um contrato social. Para um povo que ainda está escrevendo este contrato, é uma experiência mágica, importante e construtiva. Para outro povo, que já nasceu inserido em um contrato, uma geração que só é signatária por tabela, a coisa pode não parecer tão mágica assim.

Os seres democratas reconhecem isso. Reconhecem e fazem os maiores esforços para nos convencer continuamente que o sistema democrático é a melhor escolha. É a melhor escolha, pois é a única. Será?

Não penso que seja assim. Se a democracia fosse um bem evidente em si, não haveria necessidade de que seus valores fossem apregoados o tempo todo, em todos os lugares. Certamente não precisaríamos do tom de barbaridade imputado aos povos que fazem outras escolhas políticas. Esse tom se aplica tanto às piores, quanto às tentativas ainda muito recentes para que se arrisque uma avaliação – algumas  rapidamente suprimidas pelo totalitarismo de qualquer espécie.

A democracia tem medo de que outras formas políticas possam vir a ressignificar e ampliar o que ela entende por liberdade. Mais precisamente, a democracia tem medo de que a liberdade ampliada possa significar o fim do Estado, e, consequentemente, fim da necessidade de um contrato. O limite democrático é o fim dos limites. O mundo, e principalmente o ocidente (que ainda se entende como “O Mundo”, não importa quanto eufemismo o discurso politicamente correto anestesie nossa linguagem), precisa recorrentemente afirmar e reafirmar seus valores.

Um dos métodos mais eficazes de se fazer isso é formatar a tabula rasa da mente infantil na perversa máquina de padronização social chamada: Escola. Sem dúvidas, a Escola é uma das bandeiras mais solenes da democracia e, como a maior parte de suas instituições, não resiste à martelada do senso crítico agudo. A bandeira diz formar, a prática diz formatar. A bandeira diz educar, a prática diz treinar. A bandeira diz humanismo, a prática diz tecnocracia².

Inocentes pedagogos “ensinam” seus alunos (sem luz) o clarão da democracia e da pátria, do universalismo de um mundo sem fronteiras e da sacralidade da cultura estereotipada. Anestesiam com seu senso civilizatório a revolta e a imaginação infantil.

Às crianças é programado adorar a democracia e ao ocidente com todas as suas forças. Mesmo que muito antes de elas poderem, de fato, entender o que isso significa: o sangue que jorrou das veias de quem lutou por sua construção e o sangue, também vermelho, que jorrou de quem se opôs a ela. Às crianças é ensinado ver quantas vidas foram poupadas e quanta dignidade foi conferida pela resistência aos regimes totalitários de opressão declarada. É ensinado a não serem capazes de enxergar a opressão sutil, aqui representada pela amabilidade dos educadores. E a sutil (tão ou mais perversa do que a que diz combater) opressão do capital, da institucionalização da vida.

As crianças não podem sentir as algemas em seus braços pequeninos, nem as bolas de ferro em seus pés. Elas se escondem atrás do discurso teológico dos direitos e deveres do cidadão. Como resultado está o adulto de gesso. Sólido, mas que não resiste ao mais leve golpe de mão. A solidez enfraquecida dos valores democráticos.

Certa vez, Oscar Wilde disse que a opressão, quando exercida com crueldade, pode gozar o êxito de criar nas pessoas a revolta que motiva à luta, que rasga o véu de ignorância. Mas quando exercida com docilidade, não consegue fazer o oprimido enxergar sua lamentável situação. Estamos assim. Não sejamos ingênuos, a democracia – a falácia da liberdade democrática –, é essa opressão. A Escola é a cadeia da mente. A Cadeia é retenção do corpo. Há apenas a prisão na democracia: sociedade de controle, sociedade vigiada.

No meio disso tudo, não só os humanos são as vítimas, mas o mundo todo padece com o sonho febril da democracia. Todas as criaturas vivas – e  especial que compartilham conosco a capacidade do prazer e da dor, do espanto e do terror.

O adulto de gesso não pode estabelecer o vínculo entre o corredor do supermercado e o corredor do matadouro, entre os judeus em Auschwitz e as “fábricas” da Friboi. Este adulto colonizado, cumprindo uma pena a priori em anos escolares pelo único delito de nascer livre, não pode mais enxergar – para tormento das vidas para as quais ele poderia representar a redenção – o outro extremo da corrente que o prende e que está atada à pata de algum animal não-humano. Este ser humano está regenerado de antemão de qualquer delito que pudesse cometer.

Nos anos de chumbo³, a PUC-SP, então um dos redutos intelectuais da resistência à ditadura militar, fora invadida pela polícia. O então delegado na ocasião confiscou papéis em branco com o timbre oficial da universidade. Quando indagado sobre tamanho absurdo, respondeu: “Aqui está a prova do que poderia ter sido escrito”.

Com todo respeito pela dor dos que padeceram sob a cruel mão da tirania nestes anos, o caso soa como uma anedota que exemplifica de modo grotesco a situação da formação humana da escola brasileira: confiscar mentes ainda em branco, para evitar qualquer subversão que ali pudesse se inscrever. O Departamento de Ordem Política e Social mental vigora. Em tempos de virtualização da vida, o Estado opressor se revigora e a opressão se insere de uma nova forma, com sua crueldade fordista da mente. Os anos de chumbo não terminaram.

Embora a retórica do governo tenha se adaptado aos novos tempos, sua mão de ferro apenas se “hidraulizou”: com movimentos mais sutis e mais precisos, não mais esmaga a resistência majoritariamente como quem esmaga um inseto, mas o faz com a extirpação cirúrgica da imaginação e do inconformismo. Não mais temos a ameaça “visível” das  pistolas (que agora são apontadas em segredo para as nossas cabeças), mas sob a ponta de uma agulha, de uma seringa, de uma morfina ideológica. O conforto que traz a cegueira do que não se quer ver.

Na capa do livro de nossa história pairam, em letras douradas sobre seu prefácio e créditos, os avanços sociais e políticos das últimas décadas para inglês ver e a classe média aplaudir. Índices de educação, índices de empregos, escolas técnicas, urbanização de áreas, UPAS, AMES, SAMU, Polícia Pacificadora.

Polícia e Paz são termos que não cabem em concordância em uma mesma oração ou em um mesmo território. Nas eleições recentes, a capital paulista elegeu três grandes nomes da “ordem pública”. Entre eles, o Coronel Telhada: esteio da ordem e da moral. Declarou-se a guerra em uma bandeirola branca que será tingida com sangue quando as viaturas da ROTA cruzarem como malditos fantasmas as ruas da capital paulistana. Jamais Morumbi e Granja Viana! Pior e mais cruel que as pragas do Egito, farão o medo nos trancar dentro de casa.

Por trás do conto de fadas que a classe média vai ler para suas crianças à beira da cama, e nas páginas centrais desse famigerado livro da história recente da nossa nação, a piada estará. Não mais de dourado, mas de carmim dos seres crioulos, os terríveis contos de horror da realidade de quem não faz coro com a docilidade e obediência à reza do Estado.

Da mesma forma que a opressão dócil sobre todos esconde a ainda opressão clássica, brutal e violenta sobre os que se recusam à docilidade (e que nem inglês ou classe média fará questão de ver) também está a sutil e doce opressão sobre nossos companheiros de patas e focinhos.

Pagamos àqueles que trabalham no açougue para fazer o serviço sujo do qual não queremos ter direta responsabilidade. Olhe para a vitrine de um açougue e tente não se convencer de que aquilo não é um necrotério. Coma o cadáver, as entranhas do que ousou não ter forma humana. Alimente-se de sua dor. Seja um ser civilizado e não deixe um resto no prato. Seja o túmulo dos que morreram injustamente. Faça de seu corpo um cemitério de indigentes desovados em nome da higienização urbana. Role as entranhas dos companheiros e companheiras por seu esôfago, como civilizações primitivas rolavam cabeças de seus semelhantes para aplacar a ira dos Deuses, para aplacar a sua vaidade de glutão. Como os delegados e delegadas furam o peito daqueles chefes do tráfico para aplacar o deus da opinião pública, severamente preocupada com o cuidado de seu patrimônio.

Quanta crueldade e opressão exercida sobre aqueles sem forma humana, que nos oferecem companheirismo, é feita diariamente atrás da embalagem de sua “fazendinha feliz”? Quanta morte, dor e sofrimento cabe em seu queijo, seu café com leite? Dê uma mordida em seu pão de queijo e visualize a marreta moer o crânio de um bezerro macho que não serve para a produção de gado leiteiro. Imagine sua mãe com aqueles sugadores nos mamilos e você apartado dela. Imagine-se morto por não servir aos interesses do opressor.

Até quando seremos ignorantes? Até quando fecharemos os olhos?! Que arranquem nossa pálpebra para que nós não mais deixemos de ver os doces frutos da democracia, da fazendinha feliz, da McMentira Feliz, do maior acesso do povo brasileiro comum à carne e derivados, do churrasquinho inocente no final de semana, da polícia subindo o morro, do rodeio de Barretos, da rede Globo, do lobby da indústria de laticínios, do Edir Macedo, do “Abate Humanitário”, da Escola Técnica.

Não, amigos. Eu não acredito nos Leprenchauns. Enfie o braço por dentro do pote de ouro e sinta as vísceras ainda quentes de sangue humano e não-humano. No caminho para o lar, passe por uma Escola, um Presídio e um Açougue. Se não sentir indignação, você se tornou um ser civilizado. Engasgue-se com o ouro atrás do arco-íris!

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Glossário:

¹ Democracia/democrata: O termo origina-se do grego antigo (“governo do povo”); o termo é um antônimo para aristokratia (“regime de uma elite”). Embora, teoricamente, estas definições sejam opostas, na prática, a distinção entre elas foi obscurecida historicamente. Em praticamente todos os governos democráticos em toda a história antiga e moderna, a cidadania democrática valia apenas para uma elite de pessoas, até que a emancipação completa foi conquistada para todos os cidadãos adultos na maioria das democracias modernas através de movimentos por sufrágio universal durante os séculos XIX e XX. O sistema democrático contrasta com outras formas de governo em que o poder é detido por uma pessoa — como em uma monarquia — ou em que o poder é mantido por um pequeno número de indivíduos — como em uma oligarquia. No entanto, essas oposições, herdadas da filosofia grega, são agora ambíguas porque os governos contemporâneos têm misturado elementos democráticos, oligárquicos e monárquicos em seus sistemas políticos. Karl Popper definiu a democracia em contraste com ditadura ou tirania. O meu texto relativiza e coloca em cheque essa “frágil” definição e salienta as contradições no que a democracia se diz ser, e de fato, no que é: a ditadura da maioria. Democratas são pessoas que defendem o sistema democrático.

² Tecnocrata: Tecnocracia é o modelo de governabilidade funcional, no qual há aplicação das ciências no ciclo de todas as cadeias produtivas garantindo a sustentabilidade da espécie humana. Isto significa que, os esforços para capacitação técnica, o planejamento rigoroso para o desenvolvimento, a industrialização, a geração de empregos para cargos altamente especializados, a criação de infraestrutura a partir da economia inovadora, o aumento na qualidade da Educação Fundamental, Média e Superior com produção de Ciência & Tecnologia fariam dos cidadãos cientistas que governariam um Tecnado. Deste modo, o Tecnado substituiria a República e os representantes que ocupam os poderes legislativos e executivos seriam escolhidos com base na experiência, no notório saber e pelas contribuições a humanidade – quaisquer que seja o campo científico.

³ Anos de chumbo: A expressão anos de chumbo foi aplicada inicialmente a um fenômeno da Europa Ocidental, relacionado com a Guerra Fria e com a estratégia da tensão. Designa o período compreendido aproximadamente entre o pós-1968 e o fim dos anos 1970, na Alemanha, ou meados dos anos 1980, na França e na Itália — anos marcados por violência política, guerrilha revolucionária armada e terrorismo de Extrema esquerda e de extrema direita, bem como pelo endurecimento do aparato repressivo dos estados democráticos da Europa Ocidental. Os Anos de Chumbo foram o período mais repressivo da ditadura militar no Brasil, estendendo-se basicamente do fim de 1968, com a edição do AI-5 em 13 de dezembro daquele ano, até o final do governo Médici, em março de 1974. Durante esse período, houve o desaparecimento e morte de centenas de militantes civis e ativistas envolvidos em atividades consideradas subversivas pelo governo militar ditatorial. Outros desses militantes foram obrigados a viver na clandestinidade ou pedir asilo político em outros países. Nessa época, a liberdade de imprensa, de expressão e manifestação foram cerceadas. Alguns veículos, como a Rede Globo e a editora Manchete, são acusados de terem compactuado com o governo, na tentativa de transmitir a imagem de que uma revolução não estava em curso —enquanto a imprensa que se opunha ao militarismo tinha de driblar a Censura para fazer uma crítica velada ao governo em veículos como o jornal Pasquim, entre outros.

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