Lágrimas de quê, afinal?
Tristeza?
Raiva?
Angústia?
Desespero?
Algumas vezes na vida eu chorei de raiva. Raiva mesmo, raiva de mim, do mundo, do outro. Raiva da impotência diante de uma injustiça que a maioria não vê. Conseguem imaginar como é se ver diante de uma cena que você acha inaceitável e o mundo inteiro acha normal? Conseguem pensar como é frustrante e, por vezes, desesperador tentar fazer as pessoas notarem algo que parece tão óbvio dentro de você? Sabem o que é ter que sorrir pra todo mundo, inclusive (e principalmente) para as pessoas que fazem essa frustração atingir níveis quase insuportáveis?
Hoje eu choro. E me dou o direito de sentir raiva. Minha raiva, minha tristeza e minha angústia não são destinados a ninguém em particular. Tenho raiva da minha impotência e de saber que, provavelmente, estou fazendo muita coisa errada. Por saber que podia e devia fazer mais. Por saber que chorar e ter raiva não ajuda em nada, e que eu não deveria perder tempo com isso.
Hoje meu choro é diferente daquele do dia 06/12/13.
Pouca gente sabe o que aconteceu no dia seis de dezembro do ano passado. E pouca gente se importa.
Mas vou contar, caso exista alguém interessado em saber e, talvez entender, o motivo da minha raiva e do gosto salgado que se espalha pelo meu rosto.
Dia seis de dezembro do ano passado eu fui ao interior de São Paulo, a uma incubadora de aves, pra pedir animais “de descarte” para usar numa ação da ONG sobre o Dia Internacional dos Direitos Animais. Por sorte não estava sozinha, não sei o que teria sido de mim (obrigada, Lê). Essa incubadora é apenas uma das milhares que existem pelo mundo todo, e sua única função é produzir pintinhos aos milhares, praticamente todos os dias. Esses pintinhos, se fêmeas, podem ter dois destinos: 1) irem para a linha de produção de ovos e viverem sua vida inteira enclausurada em gaiolas menores que uma folha sulfite; 2) irem para a produção de carne, e passarem os próximos 45-60 dias de vida num galpão fétido, talvez morrer por ter uma perna quebrada ou de ataque cardíaco antes da data de ser enviada para abate.
Por utilizarem só as fêmeas, em sua maioria, ocorre uma seleção, onde os pintinhos machos não são necessários, e por isso são descartados. Isso, jogados fora, às centenas, todos os dias (apenas em uma única granja). Pensando que eles eram descartados mortos, solicitei ao responsável que doasse (“quantos você precisa?”) alguns para mim. Ele separou duzentos. Isso, duzentos, que eram apenas uma parcela do descarte daquele dia (os outros foram pegos pelo caminhão da graxaria antes que chegássemos lá. Isso, pintinhos machos descartados são esmagados vivos pra virar graxa).
Chegando lá para buscar nos deparamos com o inesperado. As bandejas brancas cheias de pintinhos VIVOS. Piantes, amarelinhos, com cerca de dois dias de vida. Não dá pra descrever o choque que percorreu meu corpo. Uma coisa é você saber o que é feito, outra coisa é você VER o que é feito.
E eu vi que aqueles pintinhos, naquelas bandejas, tiveram a sorte de serem selecionados para serem “descartados” no nosso carro. Não iriam ser triturados. Não iriam ser tratados como coisas.
Depois de termos colocado os pequenos no carro eu fiquei sem fala. Sem ação. Sem conseguir pensar em mais nada além da raiva imensa por aquilo estar acontecendo e a imensa maioria das pessoas não dar a mínima.
Como assim isso existe? Como assim as pessoas não ligam? Como assim isso pode ser “normal”? Falar que me senti um lixo foi pouco. Parecia que o maldito caminhão da graxaria, cheio de pintinhos vivos, tinha passado por cima de mim. Não conseguia parar de pensar que eram “só” duzentos. E os outros daquele dia? E os outros daquela semana? Daquele mês? Do ano? Do mundo?
Um dos pintinhos mancava. Resolvemos levar conosco para São Paulo em vez de deixar no sítio junto com os outros, achamos que não sobreviveria. Ele foi batizado de DIDA (em homenagem à ação que salvou sua vida), e nas primeiras noites dormiu dentro de uma meia aconchegado ao meu peito. Não queria ficar sozinho por nada, gostava de brincar de perseguir meu dedo. O problema na perninha foi sumindo, e ele já conseguia ciscar. Tenho um vídeo dele no meu celular que não estou com coragem de ver. Tenho fotos, também. Será que ninguém entende?
Esse texto está sendo escrito porque o Dida morreu, ontem, aos dois meses e pouco de vida. Estava vivendo livre, na companhia de outros da mesma espécies, mas dois meses é o “prazo de validade”, os criadores não se importam com que doença o animal vai ter depois desse tempo, já que serão mortos mesmo. Ele provavelmente morreu de câncer no pescoço, mas foi cuidado muito bem até o último dia.
Dida foi só um, claro, eu resgatei, cuidei, levei pra adoção. Claro que eu me apeguei mais. Mas de lá pra cá morreram muitos desses 200 resgatados. E isso me faz lembrar que os que nasceram no mesmo dia que o Dida, lá no incubatório, já estão todos mortos, também, e podem estar aos pedaços na prateleira de algum supermercado comum, sem nome, sem história, só um pedaço de carne embalado.
Eu não consigo aceitar isso. E não consigo entender que alguém aceite.
Milhares de vidas jogadas fora, pra satisfazer o paladar humano. E nada mais.
Não existe consolo para a dor da impotência. O que dá pra fazer é enxugar o rosto e tentar fazer alguma coisa para reverter isso. Para que mais pessoas entendam que esse ciclo não precisa existir. Que essas mortes não precisam acontecer.
Dida, obrigada por reforçar ainda mais minha luta. Obrigada por não ter me deixado dormir, foi ótimo ter passado mais tempo sendo sua “mãe”.
Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que animais não sejam tratados como produtos, como coisas descartáveis.
Esse ciclo pode parar. Depende de cada um que consome produtos de origem animal, é só dizer não…
Até que as jaulas estejam vazias.
Até que todos sejam livres.
Descanse em paz, anjinho.
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