Nossa indiferença moral se sobressai quando se trata de ações que afetam animais não-humanos. Temos algum respeito por animais de nossa própria espécie (especismo elitista), porque somos também feitos da natureza animal e sabemos o quanto sofremos quando outros nos infligem dor, danos, tormentos para obter vantagens às custas de nosso bem-estar.
Mas, assim que ultrapassamos a margem da espécie dentro da qual nos sentimos amparados pela moralidade tradicional, jogamos por terra todo e qualquer princípio moral, deixando cair, junto com eles, todos os deveres positivos e negativos em relação a animais não-humanos.
Nossa consciência, no entanto, não nos deixa em paz. Ao discriminarmos animais (especismo elitista) e admitirmos moralmente que o sofrimento deles está justificado por nos propiciar prazeres triviais, sabemos que algo está errado em nossa posição. Também somos animais. Se não nos causasse desconforto algum, estaríamos admitindo, logicamente, que outros podem obter prazer do sofrimento que nos infligissem, sem qualquer mal-estar moral. Mas, não admitimos tal injustiça. Maltratamos os animais, ou pagamos por produtos que implicam em maus-tratos a eles, para obter prazeres triviais, mas sabemos que, por sermos animais, não aceitamos que nos maltratem para obter prazer e deleite, ainda que não triviais. Como sair desse conflito moral?
A maioria dos humanos encanta-se com a defesa dos direitos animais por encontrar nela uma promessa de solução para seu conflito. Continuam a maltratar, ou a pagar para que outros o façam em seu lugar, alguns animais, mas, põem-se à luta em defesa de outros animais, dos que estão bem longe do alcance de seu consumismo voraz. Alguns animais passam então a ser defendidos ou protegidos em seu direito de não sofrer maus-tratos, enquanto outros, maltratados diuturnamente nos campos de concentração destinados à produção para o abate ou para a indústria ovo-lacto, continuam a sofrer o tormento de serem obrigados a viver de forma contrária à sua natureza, e levados à morte pela mesma força brutal.
Defende-se o boi (macho), contra a farra humana da quaresma em Santa Catarina; o boi (macho), contra a farra dos peões, o bezerro (macho), contra o confinamento de meses que o levará à morte para tornar-se carne macia de vitelo, o galo (macho), contra a farra dos rinhistas, e assim por diante. Mas, as mesmas pessoas que abraçam a causa do boi, do touro, do galo, comem carne de galinha, de vaca, de porco, peru, bebem leite de vaca, comem alimentos preparados com ovos… sem o menor constrangimento moral.
A isso denomina-se especismo eletivo: à predileção por determinadas espécies animais, abraçadas como dignas de consideração e respeito, enquanto se cultiva a mais fria indiferença em relação ao sofrimento de todos os animais que são fabricados e mortos em meio aos maiores tormentos em escala industrial, para prover os comedores e consumidores de produtos feitos com base na matéria de suas carcaças. Se cometemos tal discriminação, não podemos ser éticos. Portanto, não basta, para ser ético, abolir o especismo elitista. É preciso abolir também o especismo eletivo, isto é, a forma de discriminação que julga bastar abraçar um tipo de bicho para resolver o conflito moral que resulta de julgar que os interesses vitais de determinados animais contam mais, ou contam menos, do que os interesses de outros.
Publicado inicialmente na ANDA.
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