Um acontecimento importante ocorreu este ano dentro da luta vegana feminista
O congresso Fazendo Gênero, o de maior porte sobre o tema no país, conseguiu viabilizar, graças principalmente aos esforços da professora Patrícia Lessa, um Simpósio Temático sobre as interseccionalidades entre as relações de gênero e espécie, do qual participei com um trabalho no mês passado.
Não consigo descrever minha emoção. Quando comecei a estudar esta abordagem, há pouco mais de três anos, via uma resistência enorme por parte dos Estudos Feministas para falar sobre especismo. Mas, surpreendentemente, em pouco tempo, mudanças bastante significativas aconteceram. Hoje há muita representatividade para trabalhos feministas, como o meu, dentro do movimento social de direitos animais; um número consideravelmente maior de feministas que se abstêm do consumo de sofrimento animal; além de espaços mais amplos para o diálogo com as pessoas que discordam desta abordagem. Há uma boa perspectiva futura para este pensamento.
Mas, voltando no tempo, quando eu ainda não era visto como um acadêmico da área, mas como um homem inventando uma forma esquizofrênica de desarticular o feminismo por dentro, algo ocorreu que me deixou bastante engasgado. Estava em uma conversa com um grupo de desconhecidos, após a primeira aula de uma disciplina de História, que tinha pensado em fazer. Neste grupo havia duas feministas, que colocavam pontos interessantes em favor de uma revisão queer da teoria da história.
Conversas, como sempre, vão e vem, e eventualmente falei que algumas autoras, principalmente nos Estados Unidos, buscavam estudar as raízes comuns entre as opressões de espécie e gênero, e que eu estava estudando isto. Uma das historiadoras, a que eu via como a mais articulada e inteligente da conversa, virou as costas para o grupo e saiu revoltada pelo corredor dos subterrâneos do departamento, me deixando falando sozinho. Ela não quis saber dos argumentos. Apenas disse: “Mas o que é que tem a ver?! Faça-me o favor, viu?”. Confesso que achei aquela uma atitude bem indelicada, me afetou muito. Mas não julgo a atitude dela e sempre quis continuar o debate.
Este texto é precisamente isto: uma curta resposta para esta pergunta “o que é que tem a ver?”. Trata-se apenas da minha posição, fruto de meus estudos. Se a leitora ou o leitor não pensa valer a pena, tem liberdade de fazer como minha colega de universidade e ir embora; é um direito inalienável. Mas também pode continuar a leitura e exercitar a curiosidade que, na minha opinião, é o motor maior da empatia pela alteridade, uma das maiores qualidades do pensamento feminista.
Vamos à pergunta. Creio que a resposta principia no domínio do corpo. Através do controle da sexualidade e dos sistemas reprodutivos femininos, o patriarcado se apropria do poder geracional da sociedade. Ele define os limites da sexualidade e propõe um caráter puramente instrumental para as relações afetivas.
Em suma: a cultura patriarcal cria uma ideia de sexo vocacionada para a reprodução. A mulher é pintada como um ser irracional movido por uma ultra-sensualidade. O único indivíduo colocado como capaz de conceber o sexo “correto” é o homem, que, consequentemente, é visto, muitas vezes, como possuidor do monopólio do consentimento. Por isso, constantemente, em casos de estupro, a sociedade culpabiliza a vítima por ser sexual demais e causar a violência.
Algo semelhante acontece na domesticação de animais. A reprodução da maioria dos não-humanos do planeta é, em larga medida, direcionada para o consumo. O controle da vida sexual dos animais é completo e absoluto. Não lhes é permitida a possibilidade de expressar o desejo próprio que os habita, nem de exercer consentimento. Suas expressões de vontade individual, nesta dinâmica, são vistas como um desvirtuamento de um ideal restrito de reprodução imposta por uma cultura capitalista. Assim como as mulheres, a maioria dos não-humanos em nossa sociedade não possui o direito de expressar livremente seus desejos, e vive para ser objeto de desejo de uma cultura patriarcal, sexista e especista.
Mulheres e animais partilham, em níveis diferentes, de situações análogas. Sofrem com a reclusão em ambientes domésticos controlados, com a masculinidade que se afirma através da agressão e de comportamentos predatórios, com a lógica da caça, na qual o representado como mais forte tem o “direito natural” de oprimir o mais fraco; com o essencialismo, que prega que as diferenças fisiológicas entre indivíduos os define e distribui hierarquicamente no mundo como dominantes e dominados. Todos estes elementos povoam, indubitavelmente, a opressão social de gênero e de espécie e, talvez, possuam o poder de indicar uma nova reflexão para o feminismo.
Uma das maiores evoluções que ocorreram no pensamento humano foi a constatação que as diferenças de raça e gênero não resultam de características essenciais que se revelam na biologia dos indivíduos, mas sim que são identidades sociais complexas, psico-relacionais, construídas no seio das interações entre os indivíduos. Creio que cabe ao pensamento feminista questionar a noção essencializada de espécie, para assim entender melhor, de um lugar mais empático, a cruel coexistência entre humanos e animais.
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