Neste texto, vou tratar do especismo eletivo, o irmão já idoso da xenofobia, o ódio ao que nasce em outro território que não o nosso.
É preciso mergulhar na formatação moral da tradição para entender por que tratamos os animais do jeito que os tratamos. Nós sempre os tratamos como coisas. E nos achamos os tais.
Há uma montanha de carnes, sangue, urina, fezes, vômitos, vísceras, peles, patas e focinhos, acumulada todos os dias ao redor do mundo por conta da matança de animais para virar bifes e toda sorte de “produtos” industrializados destinados ao consumo humano.
Especismo eletivo é isto: eleger uma ou duas espécies animais como prediletas para estima e compaixão. Apegar-se a esses animais e pensar que a predileção por uma espécie de animal, uma raça de animal ou por um pedigree é tudo o que “devemos” moralmente aos animais em geral. É pensar que amar esse animal em particular já compensa a dor e o tormento causados aos que não se enquadram na espécie eleita nem atendem aos requisitos da raça predileta.
Quem pratica o especismo eletivo não se dá conta de que todo seu amor “pelos animais” (uma categoria tão abrangente que chega a reunir formigas, baratas, aves, répteis e vertebrados, como se entre uma e outra dessas milhões de espécies não houvessem mistérios sequer estudados, traduzindo em cada indivíduo uma singularidade não repetível) de fato se esgota na fronteira do modelo no qual o corpo do animal eleito para estima veio à vida.
E as pessoas que se agarram a “gatinhos” (sempre no masculino e diminutivo!) ou a “bichinhos” (idem), se dizem protetoras “dos animais” em geral, como se “seu” cãozinho ou o “seu” gatinho fossem representantes de todos os indivíduos animais de todos os tipos e formatos espalhados por todas as regiões do planeta.
Cães e gatos não representam todos os espíritos animados transeuntes em corpos desenhados conforme a necessidade de cada um daqueles espíritos. E, especialmente os cães e gatos domados pela convivência com humanos já não representam sequer o espírito genuíno canino ou felino, evoluído naturalmente para expressar sua singularidade enquanto espécie animal. Os humanos os têm como prediletos porque esses espíritos já estão antropomorfizados.
Precisamos pensar profundamente sobre nossa condição animal. Talvez seja bom começar imaginando a hipótese de ter nascido com a sensibilidade, a inteligência, a racionalidade, a afetividade, a emocionalidade animal-humana, mas com um corpo desenhado de outro modo, do tipo jacaré, onça, porca, perua, ovelha, cabra, lagarta, sabiá, galinha, pata, égua, girafa ou outra qualquer.
Todas as demais espécies animais possuem uma linguagem singular. Mas, do alto de nossa soberba e com tamanha inteligência, ainda não fomos capazes de traduzir para a linguagem humana o que os animais estão a dizer o tempo todo.
Portanto, tudo o que a gente quisesse comunicar aos humanos sobre o que se passa em nossa mente, confinada ao formato material do corpo visto como diferente do humano pelos humanos, bateria nessa muralha física e mental da surdez humana para todo tipo de linguagem animal que não seja a humana em suas diferentes línguas.
Imaginemos isto: que nascemos com a mente animal, mas em um corpo cujo formato os animais humanos foram treinados a desdenhar. E ali estaríamos, enquanto espíritos, confinados a essa cápsula que é o corpo material. Estaríamos o tempo todo a dizer aos humanos o que sentimos com o que eles nos fazem de mal.
Mas nosso dizer, por não se traduzir em nenhuma das línguas da linguagem típica dos humanos, que têm palavras para todo tipo de sensação, nunca seria ouvido. Os sons que pronunciássemos não seriam ouvidos, porque o ouvido humano é limitado nessa frequência.
Ao longo da história, nos textos religiosos que tratam os animais de modo especista elitista, os filósofos e teólogos antropocêntricos afirmam que os animais são mudos. Projetam nos animais sua surdez seletiva. E se acham os tais!
Para superar o especismo elitista (que diz que o único animal digno de respeito é o humano), e o especismo eletivo (que abraça um animal mas passa a faca no bife do outro), é preciso imaginar-se nascido com um corpo cujo formato externo difere do formato dos corpos dos indivíduos da espécie humana.
E ali dentro, aprisionado a esse corpo, há um espírito animado. Um espírito senciente, pulsando pela vida, mas confinado e ameaçado todo tempo pela lâmina da morte.
Os humanos, com seus corpos desenhados de outro modo que não o daquele a quem entregam a senha da morte na esteira do abatedouro, se proclamam superiores. Eles simplesmente se apoiam sobre duas patas com cinco dedos. Eles têm as outras duas patas, as dianteiras, também com cinco dedos, livres, para manipular o mundo, transformá-lo, e, com isso, transformar-se continuamente.
Mas o que os humanos mais têm feito não é transformar-se, transformando sua mente carregada de conceitos obsoletos em uma mente aberta, que acolha todos os animais no sentimento do respeito pela vida e sua singularidade.
O que os humanos mais têm feito, tendo duas das patas livres para operar, criar e recriar seu espírito, é usar essas duas patas livres, com seus cinco dedos cada, para matar e empilhar os restos mortais desses outros animais que não nascem no formato material considerado digno de respeito.
Todos os corpos materiais merecem respeito. É neles que o espírito singular de cada espécie de vida se manifesta. Não há escolha eletiva que torne um corpo mais digno de respeito do que o outro.
Texto publicado originalmente na fanpage do: Galactolatria.
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