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Artigos, Artigos sobre Direitos Animais.

Para compreender o Flexitarianismo e seu impacto é preciso antes entender minimamente sobre o Vegetarianismo, pois o primeiro termo é derivado do segundo, derivado do pensamento antropocêntrico que rodeia o segundo e das distorções do senso comum e midiáticas que o afetaram.

No passado, em 1.847, surgiu a Sociedade Vegetariana (VegSoc) do Reino Unido e junto a ela, segundo afirmações e definições da própria entidade, foi “criado” o termo “Vegetarian” por Joseph Brotherton, um vegetariano (não consumia produtos de origem animal).

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Brotherton era uma figura pública e política muito querida. Trabalhador, pacifista, anti-escravidão e preocupado com a exploração do trabalho infantil da época, um homem de visão humanitária pregador da paz entre nações, que acreditava na força da Educação para transformação humana que, para ele, passava por questões de saúde física e mental, que por sua vez, dependem da dieta, do ato de comer e beber, até por isso Joseph Brotherton era vegetariano e pregava contra o consumo de álcool e tabaco.

Seu vegetarianismo foi baseado, em certo grau, na sensibilidade dos animais, assim como sua posição política, que abarcava causas humanas. Vale dizer que a “Vegetarian Society (UK)” surgiu de ações de levar comida vegetariana para pessoas carentes.

Não resta dúvidas de que motivações filosóficas e éticas, pensadas também na questão dos animais, abarcavam o vegetarianismo da época, porém acredita-se que, como uma forma de unificar todas as pessoas que tinham uma certa semelhança de dieta, buscou-se um ponto em comum.

Existiam grupos com inspirações diversas, mas com práticas próximas, alguns não consumiam ovos e tomavam leite como era o caso de parte dos indianos, outros não consumiam nada de origem animal, outros incluíram o consumo de ovos, como os ingleses. O ponto em comum era que todos não consumiam carne de animais e foi essa uma das brechas encontradas para dar um novo significado ao vegetarianismo, que possuía um caráter estritamente vegetal, um outro significado que pudesse incluir todas as ‘tribos’ da época.

Uma hipótese pessoal é que, devido as barreiras de se tratar do não-consumo de ovos e leite no próprio meio ‘simpatizante’, Joseph, assim como outros membros, tenha mantido uma posição flexível e aceitado a mudança do termo para essa nova forma de “vegetarianismo”.

Sem querer de maneira alguma cometer anacronismos, mas devemos compreender que: se o antropocentrismo ainda reina o pensamento de muitos vegetarianos e veganos atualmente, o que dirá naquela época?

Talvez tenha sido também por isso que houve uma certa aceitação de que com o surgimento da VegSoc e essa ideia de unificação dos povos, a modificação do conceito de vegetarianismo (dieta vegetal) para ovo-lacto “vegetarianismo” como dieta padrão, tenha sido aceita por uma parte dos membros da VegSoc.

Valioso saber que anterior ao surgimento da VegSoc do Reino Unido, no séc. XIX, a primeira entidade vegetariana já havia surgido, a “Bible Christian Church”, fundada em Salford em 1.809. Foi defendido, mas não exigido por essa entidade a adoção do Vegetarianismo como uma corrente alimentar baseada em uma dieta vegetal (sem animais e derivados como ovos e leite) o que pode ser comprovado pela publicação do primeiro livro vegetariano do mundo em 1.812, escrito pela própria esposa de Joseph, Martha Brotherton, intitulado “Vegetable Cookery”.

Segundo a pesquisadora e filósofa brasileira Sônia T. Felipe, a distorção dos termos teve origem na própria Vegetarian Society do Reino Unido, por volta de 1.888, quando seu presidente, J. B Mayor, preocupado com o pequeno número de associados à sociedade, quis redefinir o próprio termo, de modo a torná-lo mais abrangente.

Professor de latim na Universidade de Cambridge, Mayor não teve dificuldade em associar “vegetarianism” a “vegetus”, dissociando-o de “vegetable”, causando muita contestação e provocando inclusive uma cisão (transferência de patrimônios) na sociedade vegetariana da época.

O vegetarianismo, por história e definição – independente das distorções que sofreu no passado e sofre no presente – é uma dieta de cereais, leguminosas, nozes, sementes, legumes e frutas, sem a utilização de pedaços dos corpos de animais, produtos lácteos e ovos e de qualquer produto de origem animal na alimentação.

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Esse fato pode ser reforçado pela precursora da Vegetarian Society, fundada em 1.843, que se chamava The British and Foreign Society for the Promotion of Humanity and Abstinence from Animal Food (Sociedade Britânica e Estrangeira para a Promoção do Humanitarismo e Abstinência de Produtos de Origem Animal) e não Sociedade pela Abstinência Exclusivamente de Carnes.

Na atualidade, cresce o número de pessoas que não consideram o ovo e o leite como algo vegetariano e adotam a definição correta historicamente de vegetarianismo como uma prática alimentar baseada em vegetais, sem a inclusão de derivados de animais.

O Flexitarianismo, por outro lado, funde a palavra “vegetarianismo” (com seu sentido distorcido: exclusão apenas da carne) com a palavra “flexível”.

Cunhado em 1.992, o termo “Flexitarian” surgiu como obra da jornalista Linda Anthony para designar alguém que pratica um tipo mais indulgente de dieta “vegetariana”. Sendo assim, flexitariana é a pessoa que pratica o “vegetarianismo” (distorcido – apenas exclusão da carne) em um ou alguns dias da semana. Não tomando a atitude concreta de “ser vegetariana”, faz sua dieta de maneira flexível, apenas um dia ou outro, com alternâncias e períodos estipulados e praticados, conforme vontade própria, de querer ou não querer consumir carne (de animais) naquele dia.

Diferente do Flexitarianismo, o vegetarianismo distorcido, ou, como prefiro chamar, o “vegetarianismo” pecuarista, é rígido apenas no que tange a exclusão do consumo (direto) de carne de animais, mas permite o consumo de produtos de origem animal como gelatina (que é feita de ossos e tecidos de animais), cochonilha, leites, ovos, mel, entre outros, que causam tanta ou mais exploração animal quanto o consumo de carne em si.

A prática do Flexitarianismo, oriunda do vegetarianismo distorcido, estrutura-se em uma motivação humana antropocêntrica, como espiritualidade, saúde, entre outras. Ela carrega consigo impactos graves na implementação do vegetarianismo ético e do veganismo abolicionista, nos quais exige uma força de reflexão mínima e olhares atentos para perceber a problemática dessa linha de dieta.

O pensamento por trás dessa nova corrente alimentar é uma das causas do seu impacto negativo. Nessa definição dietética, a pessoa flexitariana, ou que deseja se tornar flexitariana, assume essa postura por um viés de benefício próprio (geralmente mais saúde) e vê essa dieta como uma alimentação que deve ser praticada por pessoas “equilibradas” como ela (como se adoção do vegetarianismo fosse algo fora de sintonia e exagerado). O flexitarianismo permeia todo um discurso umbiguista de que a vontade humana deve estar em primeiro lugar, não levando em conta critério algum de que os animais devem ser respeitados e que isso implica em não comê-los, nem usá-los.

Parte da problemática do Flexitarianismo se encontra na motivação e no pensamento que ele reforça: a motivação não é por um senso de justiça ou preocupação com o fator primário (direitos animais) e sim por razões secundárias que apenas buscam gerar benefício próprio.

Além dos “princípios” serem antropocêntricos, é muito comum pessoas que adotam esse estilo “equilibrado” ficarem estagnadas por anos a fio e ainda se sentirem pertencentes à comunidade vegetariana, acreditando ter o direito de falar em nome da temática e propagar discursos que não representam o vegetarianismo e o veganismo, tampouco os interesses dos animais, objeto de motivação para os dois anteriores.

Esse tipo de comportamento é muito comum por parte das celebridades e incentivada pela mídia. Carregado de estereótipo, consegue destruir em poucas horas um trabalho de anos de educação do meio vegano responsável, confundindo mais ainda a cabeça das pessoas sobre o real significado do vegetarianismo.

Não é raro hoje em dia ver celebridades dizendo ser vegetarianas ou veganas, enquanto na prática mantém o consumo de certos animais como peixe ou de derivados como queijos, passando a ideia errônea de que vegetarianos/veganos são flexíveis e não levam o respeito aos animais a sério como dizem, visto que o público passa a ver essas pessoas flexitarianas, que frequentemente se denominam vegetarianas, como se fossem representantes legítimas da comunidade vegetariana / vegana.

No campo teórico, o pensamento antropocêntrico destrutivo e a visão especista preconceituosa continuam e são incentivadas profundamente no Flexitarianismo. Já na prática, o efeito é de estagnação e dose de conforto, em que a pessoa dificilmente desvincula da visão que ela é uma pessoa “equilibrada” e que a única função possível da alimentação é de uma simples dieta para atingir seus objetivos pessoais (emagrecer, ficar saudável, etc), ao invés, de começar a pensar na alimentação com criticidade, seja política, ambiental ou ética.

Uma breve pesquisa na internet sobre o Flexitarianismo encontramos facilmente vestígios desse antropocentrismo na essência, como essa chamada publicada pela ONG Bem-estarista HSI: “Flexitarianismo: Repensar o Consumo de Carnes Não Precisa Ser “Tudo ou Nada” – Segunda Sem Carne é um programa de sucesso na promoção de um dia por semana sem carne (Flexitarianismo)“.

Em matéria na BBC, o reforço de que o Flexitarianismo é uma maneira de deixar as pessoas com a consciência tranquila, em detrimento do impacto na vida dos animais e do planeta, é visível logo na chamada do cabeçalho: “O flexitarianismo, a maneira mais verde de comer carne“.

A notícia ainda ressalta a importância da campanha Segunda Sem Carne na divulgação do Flexitarianismo, a base antropocêntrica e os valores anti-animalistas do Flexitarianismo também podem ser presenciados nos motivos para aderir à campanha, como: economizar dinheiro através de uma refeição sem carnes, ser menos propenso a enfermidades cardiovasculares, câncer e diabetes e um meio ambiente equilibrado para si próprio. A motivação pelos animais, que deveria ser prioridade, quase nem aparece ou, quando aparece, é colocada em segundo plano como apenas mais um fator, mais para dizer que não deixaram de citar. Afinal, o que importa é que você “descubra novos sabores”.

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Por essas e muitas outras razões, o Flexitarianismo é incompatível com os Direitos Animais, que é a noção de que os animais são seres sencientes e, portanto, possuem interesses próprios e devem ser respeitados, incluídos na comunidade moral.

Prevendo que algumas pessoas possam interpretar erroneamente que o vegetarianismo ético ou o veganismo abolicionista em oposição ao Flexitarianismo é uma proposta “Tudo ou Nada” que quer empurrar goela abaixo suas demandas éticas e obrigar as pessoas a mudarem do dia para a noite, já irei me adiantar em responder que uma mudança de dieta (vegetarianismo) ou no modo de viver como um todo (veganismo) pode ser feita de forma direta (quanto mais rápido, melhor) ou de forma gradual (desde que com foco, compromisso e sem enrolação, afinal, os animais dependem disso).

Nem toda pessoa que é apática ao consumo de carne (vermelha ou branca) é flexitariana.

Uma pessoa que está verdadeiramente em uma etapa de transição para o vegetarianismo não é flexitariana, desde que esteja realmente empenhada em mudar sua alimentação.

Flexitariana é aquela pessoa que está na zona de conforto e faz uma dieta sem carne por alguns dias da semana ou durante um certo período, e que sempre posterga uma mudança real da dieta tradicional para uma autenticamente vegetariana.

Protovegetariano é o termo mais adequado para aquelas pessoas que aboliram o consumo de carne totalmente e que provavelmente devem estar naturalmente empenhadas na transição para se tornarem vegetarianas. O radical grego Proto, muitas vezes traduzido como “primeiro” ou “primordial”, traz a ideia de algo em construção, portanto, um protovegetariano é um rascunho, um possível vegetariano em formação.

E o vegetariano é aquele que aboliu de sua dieta todo e qualquer produto de origem animal.

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